8 de outubro de 2012

Critica teatral para o espetáculo "TAIÔ" no FENTEPP 2012, pelo olhar sensível de Valmir Santos.

Crítica Teatral - Talhos e retalhos poéticos entre o céu e o asfalto (por Valmir Santos)

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O diretor José Celso Martinez Corrêa, fundador do grupo Oficina, contava 21 anos, em 1958, quando escreveu sua primeira peça, “Vento Forte Para Papagaio Subir”. Um canto autobiográfico à liberdade: romper com as amarras morais e familiares que lhe atravancavam em sua cidade natal, Araraquara, para descortinar outros horizontes pessoais – sorte dos milhares de espectadores que acompanhamos o teatro singular de Zé Celso até hoje.
Em “Taiô”, que estreou em maio na capital paulista, a Companhia do Miolo recorre à simbologia da pipa como espinha dorsal da dramaturgia e da encenação. A ode à liberdade é inequívoca nesse agrupamento dedicado a afirmar sua arte em espaço público. A cidade é tecida a partir de um mapeamento afetivo e crítico que discute noções como pertencer e deslocar-se, reivindicar e submeter-se, estar e não ser. Sua história pede poros da percepção abertos: não é simplesmente contada, mas cantada, sentida, flutuada.
O texto do também ator Jé Oliveira (o mesmo dramaturgo do Coletivo Negro que passou pelo Fentepp) rejeita a imagem idílica da pipa em céu de brigadeiro. Seu papagaio empinado é cortado, sofre um “taio” por outro desses brinquedos que, ironicamente, “disputa” espaço no céu, espelho do que também se dá no chão cotidiano.
Surgem imagens como a grita da molecada para ver quem agarra a pipa que está caindo. O prazer em desbicar e ver a rabiola tremular. O ato de descarregar a linha ou enrolá-la na lata. O baque em ser cortado como um cordão umbilical.
Esse viés lúdico de complexidade adulta, ainda que embebido na cultura infantojuvenil, guia o imaginário desses Ícaros urbanos que anseiam voar com autonomia e desenvoltura.
A diretora Renata Lemes, o quinteto de atores e toda a equipe esquadrinham poeticamente os elementos do espetáculo, atentos a que a estrutura lírica do texto não relativize a aspereza do asfalto. A lida concreta do cidadão com a cidade é ilustrada pelo transporte público, o ônibus e o metrô abarrotados de São Paulo, especificamente a rotina dos usuários das estações da linha vermelha que liga as regiões leste e oeste, mancha urbana objeto da pesquisa de campo da companhia. São cerca de 3 milhões de passageiros, ou o deslocamento de um Uruguai a cada manhã de dia útil, o que dá ideia do campo de disputa física.
Curiosamente, a primeira sessão do espetáculo no Fentepp aconteceu num final de manhã de sexta-feira, no bucólico bairro Ana Jacinta, cercado por morros e áreas verdes. No pátio externo e cimentado de um equipamento educacional e cultural chamado Praça da Juventude, era possível ouvir o canto dos pássaros e o agito do vento.
Nessa paisagem antagônica àquela evocada em “Taiô” foi possível verificar como o espetáculo não fica preso ao furacão da metrópole, o que seria uma contradição – não é incomum ver trabalhos que não abarcam tal flexibilidade que muitas vezes reivindicam em suas temáticas e se revelam circunscritos em outras paragens.
O maior trunfo da montagem é o caráter performativo sustentado pela qualidade de energia dos atores, duas mulheres e três homens espertos na palavra enunciada em monólogos e solilóquios, trovadores de uma narrativa que exige um corpo igualmente multipolar no contato improvisação da dança, na disparada perpendicular no meio dos espectadores, na levada hip-hop à maneira dos MCs (endosso dos caixotes grafitados no cenário de Julio Dojcsar), na manipulação de objetos para dar margem às metáforas (guarda-chuvas são convertidos em plumagem), entre outras mutações.
A música é componente seminal nessa jornada com Gabriel Longhitano a contracenar ao vivo, violão e voz, ou ainda operando a trilha para as atmosferas de dolência e persistência do enredo. O músico é coautor de algumas composições ao lado de Charles Raszl, Daniel Farias e Jé Oliveira (os dois últimos completam o elenco com Daniele Rocha, Edilaine Cardoso e Milton Aires).
Figurinos e adereços de Luiz Augusto dos Santos exibem texturas e fiapos à maneira de retalhos que fazem jus ao título da peça e se convertem nas penas dessas figuras “povo-pombo” cansadas de receber migalhas, como sintetiza a Companhia do Miolo. As poesias oral, sonora e plástica fazem de “Taiô” uma experiência artística de/para/com a rua de extrema riqueza em suas urgências e delicadezas.
Fonte: Assessoria de Imprensa XIX FENTEPP

 

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